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sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

A Sexta Chamada

Converter em arrependimento o amor. O valor terá a mesma cotação do que tinha,
o desprendimento da dor. Será o mesmo sentimento mas com outro sabor, será
arrependimento.
Há como se arrepender de amar, ou melhor, de ter amado?
Será que posso não prejudicar meu presente e não comprometer o futuro se me
arrepender do passado, ainda mais num passado que houve amor?
Será um futuro órfão, auto-depreciativo, cheio de rancor. O presente é o responsável
pelo pedido de anulação das reminiscencias , por se proclamar prejudicado. É o presente
que pede a abolição do passado, sem clemencia.
Penso que seja fácil fazer a conversão. Pego todo o amor que ainda sinto, amor ainda
bastante vivo e ativo; pego toda a mágoa, a angustia, os traumas, a saudade, as lembranças,
a imagem do rosto, o cheiro do cabelo, a beleza do corpo, o matiz dos olhos, o beijo,
o olhar, e o enunciado, a memória auditiva da primeira vez que o coração ouviu a condenação
desse passado, o matador "eu ti amo".
Pego tudo e subverto, faço uma inversão apurada e somo a isso tudo a minha vontade de
deletar todo esse histórico. Consigo uma importância significativa e compatível com aquilo
que se sentia, na verdade o contrario exato daquilo que se sentia. Pronto, e agora o que faço?
Só há um único jeito de isso acontecer. Matar o passado. Preciso matá-la.
Já sei, vou esperá-la na saída do trabalho, fico umas quatro quadras acima, espero na esquina,
na penumbra. As dez horas da noite naquele local não passa ninguém mesmo, é isso, é o que
vou fazer. Mas como vou matá-la? Acho que o melhor é com um tiro. Espero ela passar e
saio de trás do muro, em silêncio, pé por pé, me aproximo um pouco e atiro na cabeça. Se
for preciso pra garantir dou uns dois ou três tiros. Ninguém irá ouvir o barulho, aliás, se ouvirem
será apenas só mais alguns tiros na noite. O ruído principal é o que não ouvirão, e é o que eu
faço questão de ouvir, o som da queda do seu corpo no chão, já sem vida. Talvez eu até me
esconda ali perto, pra quando acharem seu corpo eu ter a certeza de que está morta.
Caramba, fazem duas semanas que ela me ligou e disse que não me amava mais e que
estava terminando nosso namoro de quase dois anos. Dois anos, e ela termina por telefone.
Vai ser a primeira vez que à vejo desde o rompimento. Vou matá-la amanhã.
Nove e meia e já aqui, esperando. Preciso me acalmar, estou muito ansioso, preciso ficar
tranquilo pra na hora não me atrapalhar. Droga, os minutos parecem inertes, não passam.
Será que desisto, deixo para outro dia. Não vai dar, vai ter que ser agora, ela ta vindo.
Posso vê-la vindo lá embaixo, umas duas quadras. Droga, e agora o que faço? Já sei,
vou ligar pra ela agora, como quem não quer nada, só pra encher o saco. Dependendo
do que ela me fale talvez eu até desista de fazer isto hoje, ou quem sabe desista da ideia
de matá-la. É isso, vou ligar pra ela.
Ligo, a primeira chamada, já posso ouvir os passos, ela tá na esquina de baixo. Segunda
chamada, mais uns vinte metros e ela passa por mim. Terceira chamada, posso vê-la
passando quase pela frente de onde estou escondido. Quarta chamada, ela está mexendo
na bolsa, acho que procurando o celular. Consigo ouvir o toque do aparelho chamando.
Quinta chamada, ela acha o telefone, vai atender mas antes olha o visor pra ver quem está
ligando. Irritada, ela diz:
— Ai meu Deus, não acredito que esse merda do Marcelo tá ligando a essa hora. Só falta
essa agora, esse idiota estragar minha noite- Sexta chamada, Ela atende:
— Alô!
— Alô, oi Adriana, tudo bem? Tenho uma surpresa pra você, olha pra trás.
Ela olhou. A cara de espanto e nojo foi a última expressão que eu vi naquele rostinho
lindo. Foram quatro tiros, todos na cabeça. O corpo cai, o sangue escorre pelo asfalto úmido.
Pego o telefone dela e saio, vou embora, satisfeito.
Na pior das hipóteses, daqui pra frente, agora tudo será só arrependimento.